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Autor: António Fortuna (Professor)
Título: Máquinas simples
Escrito a: 02 de fevereiro de 2013
Class.: Literatura Portuguesa
CDU: 821.134.3

 

 

LITERATURA E CIÊNCIA ─ Máquinas simples – Arquivos da Memória?

“Literatura e Ciência” é uma viagem à História da Ciência, no barco da Literatura Portuguesa, promovendo a intertextualidade. Pretende-se desvendar a ligação íntima entre as obras de alguns escritores e as invenções/descobertas de alguns cientistas, aproveitando as necessidades compulsivas de ambos na busca do conhecimento, uns, através da escrita, outros, da actividade experimental.”

Este texto é uma homenagem a ilustres escritores transmontanos que têm a particularidade de terem sido professores na Escola Secundária Camilo Castelo Branco, fazendo parte da sua longa história. Orgulhemo-nos por isso, não nos esquecendo que a melhor homenagem que lhes podemos fazer é lê-los.

António Cabral, no seu último livro, editado postumamente e Prémio Nacional de Poesia Fernão de Magalhães Gonçalves, atribuído pela Editora Tartaruga, escreve o seguinte: Entre a Ciência e a Poesia há pelo menos esta distância abissal: a ciência fica do lado de cá e a poesia do lado de lá, sobre as árvores.

Subamos, então, às árvores para atenuarmos essa distância e, através da poesia, descodificarmos a linguagem da ciência.

Com linguagem simples, falemos de descobertas, também elas simples, mas gigantescas nas épocas em que foram estudadas, pois são elas a essência das mais sofisticadas máquinas que povoam a Terra, sobrevoam os ares e navegam nos rios e mares do nosso Belo País.

Centremo-nos na nossa região, o Douro, dando voz a António Cabral:

Douro, Meu Belo País

Douro, Meu Belo País do vinho e do suor,
bárbaro canto arrancado à penedia
por destino que nos faz andar
da alma para os olhos, dos olhos para a alma!
(…)
Eh lá Douro, meu belo cavaleiro enamorado
por uma dama que fugia na tua angústia,
depõe , finalmente, os velhos trapos
de matagais, escombros e vinhas amortecidas.
As enxadas deixarão de cavar o desespero;
o ferro arrumar-se-ão nos arquivos da memória.
Onde irá o tempo das vacas magras
quando um tractor cantar em cada monte
a deliciosa canção da fecundidade?!
Haverá mais tractores, mais armas
apontadas aos baluartes da fome.
Haverá mais pão, haverá mais rosas.
Eh Douro, meu belo país!

Neste poema, António Cabral traz-nos à liça a enxada, o ferro de desmonte e a pá. Estas simples ferramentas foram inventadas há séculos longínquos, quando o homem, fazendo uso do seu instinto de sobrevivência, das suas liberdades mentais e manuais, inventaram estes e outros instrumentos que permitiram acrescentar à força animal a criatividade humana.

Estes simples instrumentos são aquilo a que os físicos designam por “Máquinas Simples”. Arquimedes no séc. III a.C. proferiu a célebre frase ao ter feito o estudo destas máquinas: Dêem-me um ponto de apoio e levantarei o Mundo, após ter analisado, à luz da física as alavancas.

Se ainda se lembram, as alavancas classificam-se em três tipos.

Alavanca interfixa Alavanca interpotente Alavanca inter-resistente
     

Todos nós utilizamos, ainda hoje, alavancas deste tipo que são máquinas simples.

Assim fizeram o José e o Domingos, dois patuscos personagens da obra de A.M. Pires Cabral, O Diabo veio ao enterro (Editorial Notícias, 1993). Se Arquimedes nos deixou a célebre frase Dêem-me um ponto de apoio e levantarei o Mundo, Pires Cabral também nos descreve uma heroicidade do género, se não superior, ao desenterrar o mar.

(…)
Noutra ocasião, ainda garotos, sobem de novo à serra. Por lá andam, entretidos a depenicar amoras de silva e a atirar lapadas às cotovias. A dada altura parece-lhes um como marulhar longínquo de água. O marulhar (diz-me quem isto me conta a ocultas dos protagonistas) não seria outra coisa senão o vento a fungar nas carvalheiras. Mas a eles afigurava-se ser mesmo água. Mas água como, se por ali, à vista, não corre senão um ou outro arroio incapaz de som? E todavia, apurando o ouvido, parece-lhes indiscutível que é o som de água. Então um deles (o José? O Domingos?) lembra-se de uma coisa que toda a gente sabe: que por baixo da Serra de Bornes, muito fundo, corre um braço de mar. Está aí a explicação. É o mar que marulha, enrolando-se em vagalhões subterrâneos. Há que pô-lo à vista de toda a gente. E mãos à obra. Durante toda a tarde cavam, com as mãos nuas, onde lhes palpita que o marulhar está menos fundo. Faz-se noite, há que regressar, ainda a cova não terá mais de palmo. Ah, mas não há problemas: no dia seguinte, armados de ferro e picareta, hão-de voltar e desenterrar enfim aquela maravilha oculta. Chegam à aldeia, conseguem dissimular as mãos escalavradas de tanto esgravatar. No dia seguinte, bem cedinho, é que não conseguem iludir ninguém, ajoujados ao peso desconforme de um ferro de gaviar e de uma picareta.
─ Bô! Ele onde diabo bão-nos raparigos c’os ferros?
─ Bamos à serra, a desenterrar o mar!
Faltas de sentido de humor e de imaginação, as mães obrigaram-nos a dar meia-volta e a pousar as alfaias onde as tinham encontrado. Mas o dito ficou e, pegajoso como um rabo-leva, filo-se neles durante anos e anos. Chegou a haver trocas azedas de palavras e até rixas e bordoada, se alguém lhes perguntava na mangação:
─ Atão hoije num ides a desenterrar o mar?...

Outras máquinas simples são cantadas pelos poetas que estamos a homenagear e que na sua poesia sublimam a árdua vida humana. Estes Escritores, arando papel branco, semeando palavras a pena e tinta, tal como os grandes Homens do Povo acariciaram a terra com os seus arados.

Quão simples é um arado! Com que facilidade é manejado pelo lavrador, arando a terra com esta máquina simples! Sublime o resultado, da plantação à colheita!

Colhamos nós também, aqui e agora, o resultado do trabalho árduo da sementeira do nosso poeta A.M. Pires Cabral (“Arado” ─ Livros Cotovia, 2009):

ARADO

I

A mecânica do arado é rudimentar,
Clarividente e sóbria. Nada tem
Em demasia: o que a função requer
E nada mais.

No perfil eficiente do arado
há qualquer coisa de navalha, qualquer coisa
de falo em riste, em transe de fecundar.

De facto, noutros tempos,
era o arado que rasgava a terra,
fazia dela um ventre aconchegado ─
cenário certo para o deflagrar da vida
que vai dentro das sementes.

Isto foi no tempo em que havia agricultura
nos gestos quotidianos dos homens
e das mulheres.

II

O arado ainda está no curral,
encostado a um canto.

Já ninguém o usa, à excepção
das galinhas que se empoleiram nele
quando chega a hora de cismarem.

Por enquanto tem sido poupado ao fogo,
como se o seu futuro estivesse
ainda escrito um último regresso
às genésicas tarefas da lavoura.

Mas ele sabe que nada disso está escrito.
melancólico, antecipa
a hora da corrosão.

III

Mas o arado perpetua-se em mim.
De facto, em horas de arriscada exaltação,
gosto de pensar nestes versos como sendo
um arado com que rasgo outras terras
mais voláteis e menos aráveis,
e nelas julgo deixar alguma semente.

Pura ilusão.
Nem as tais terras se deixam rasgar
assim facilmente,
nem o meu arado tem vocação de vida.

De modo que retorno ao arado
que de facto arou.

Ei-lo cabisbaixo no quintal.
Não sei de mais lastimosa coisa
do que um arado ferido de desuso,
encostado a um canto,

poleiro improvisado,

pasto de ferrugem e carcoma,

lenha em breve.

Analisemos, brevemente, a “mecânica do arado rudimentar clarividente e sóbria” 

 

Recuando mais uns séculos na escala do tempo, pode afirmar-se que uma das primitivas e grandes invenções do homem, percursoras de todas as outras, foi o fogo. Ou melhor, a produção manual do fogo, dado que a Natureza já lhe sabia os segredos.

Sem a descoberta do fogo pelo homem, não teria havido evolução científica.

A conquista do fogo aparece-nos simbolizada no mítico Prometeu (herói lendário grego) que roubou o segredo do fogo a Júpiter (deus dos deuses), sendo severamente punido (agrilhoado) por esta dádiva aos homens. Prometeu, deu, então, o fogo à Humanidade, tornando-se seu protector.

Na obra de António Cabral Prometeu Agrilhoado Hoje (Campo das Letras, 2005), pode deduzir-se essa protecção de Prometeu ao homem, dando-lhe, após a vindima no Douro, o vinho a quem o trabalha.  

(…)
E, afora percalços desta natureza, mais banzé, menos banzé, os homens dos cestos a espeidarem-se nas subidas e as oceânides às gargalhadas, o Arrais a aparelhar e a brunir o rabelo, e Prometeu a cismar, guardando o melhor para o fim, a vindima correu normalmente. E na noite anterior ao envasilhamento, depois do acerejado aparecer, fulgir e se ter ido embora com os acólitos, já a tal velha tinha morrido, é que Prometeu resolveu dar o golpe.
Estavam as duas casas do pessoal, na de baixo e na de cima, os homens e as mulheres a jantar, tendo recebido os magros salários quando Prometeu entrou, não se percebe como, nas duas quintas ao mesmo tempo e anunciou que havia uma prenda para cada um dos forasteiros – acompanhassem-no. Ficaram as garças e os familiares das gémeas de Porto de Rei e Castedo. Conduziu-os às caves, de que previamente tinha arrombado os portões, a partir do interior, e disse: bebam este vinho precioso, fruto do vosso trabalho. Bebam e levem o vinho que quiserem.
No dia seguinte, muito cedo, apareceu Hermes, o sendeiro.
─ Quem fez isto?
─ Eu, só eu, ninguém mais do que eu ─ respondeu o feitor.

Neste excerto o Arrais (capitão e timoneiro do barco rabelo) estava a aparelhar e a tornar luzidio o Rabelo.

É, de facto, incontornável, ao referirmo-nos ao Douro (rio ou região) e ao Vinho do Porto, não glorificarmos o Barco Rabelo que transportava, com grandes sobressaltos, o Vinho Fino até ao Porto.

Este meio de transporte, de grande eficácia e beleza, era construído por verdadeiros artistas. Sim, era necessário engenho e arte para fazer navegar tão genial aparato em águas revoltosas.

António Caldeira Azevedo, no seu livro Ode ao Douro (Lello Editores, 2007), ensina-nos, com mão de poeta, a Arte de navegar o Douro.  

Barco Rabelo

I

A palavra é rio e navio. A hora é tecnológica, sem achamentos e mistério. Ir para onde? Para o fugir: urdir um barco e tecer uma vela de poemas orações que nos tirem do aqui e nos salvem do além.
(…)

III

Macho da ladeira das águas, o barco rabelo ara rio acima: o homem do castelo, de rabiça nas mãos, escolhe o rumo e o espírito do vento, o linho soprando, o sulco lavra nas águas. O feitor do leme conhece bem os passos e cantos do rio, que espia pelo espiadoiro, e não há rápido, ponto ou gola que não saiba, e qual o santo a assinalá-los e invocar. Poema simples e tosco, mas encorpado, mas encorpado, musculado e destemido, que nem um viking, o rabelo, sem subjectividade, consciência de classe, proas e vaidades, é o verdadeiro ícone do esforço e do suor das águas, e do seu fim ─ carcaças a apodrecer: «mortos». De vela quadrangular panda, rio acima, ou de mastro despido, rio abaixo, a silhueta ─ envergadura grande e tosca, ventre livre ou prenhe de pipas, o homem do remo do governo empoleirado no castelo e espadela que nunca mais acaba ─ enche o rio. E cálices pelo Mundo fora – Do you want to drink a Port Wine? ─, de que nunca fez prova.  

Claro que aqui, no Barco Rabelo, também estão presentes as máquinas simples. Analisemos, na figura, o tipo de alavanca que é a espadela.

Mas, as pipas acomodam-se no barco. Carregam-se no cais com dois pranchões de madeira, formando um plano inclinado que também é sinónimo de máquina simples, utilizada desde a bruma do tempo.

Ora, plano inclinado também é sinónimo de máquina simples.

De muitas outras máquinas simples poderíamos falar, se o tempo nos não oprimisse. Poderíamos falar ainda do parafuso, das roldanas, da picota ou cegonha e até da nora.

Com este texto espero ter deixado bem regada a sementeira que aqui fizemos, aguardando que os frutos sejam de qualidade, e, assim, possamos construir um Portugal melhor.

 

(1)Palestra proferida, em 2012, nas comemorações do Dia do Patrono