Pierre Bayard
1ª Edição: outubro 2007
Editora: Verso da Kapa
ISBN: 978-972-897-445-9
160 páginas
Como falar dos livros que não lemos?
Considerações sobre a não leitura ou as quase-não leituras
Leio as letras maiores da contracapa: “A não-leitura é a chave da leitura! Este livro dispensa a leitura de todos os outros!”. Continuo: “Na verdade, Bayard ensina a saber ler sem ser necessário ler tudo, considerando por isso que tanto as não leituras como as quase-leituras são tão válidas quanto a leitura integral. O autor apresenta as técnicas da não leitura que permitem a qualquer pessoa falar de qualquer livro, em qualquer ocasião, sem nunca o ter lido.”. Verifico a data da compra: 12/09/2007. Relembro: comprei este livro porque o título, verdadeiramente EXTRA - ordinário me chamara a atenção: Como falar dos livros que não lemos? Através de uma sintaxe desarticulada inserida num círculo vermelho, surge o discurso promocional: “Nº 1 Top Vendas França”. A ilustração da capa é constituída por um boneco de BD, deitado descontraidamente, com o rosto tapado com um livro aberto, onde se pode ler: “zZz…ZZzzzZZ”. Os pés do boneco prolongam-se pela badana direita. Aí, inserido num balão, o comentário: “Alivia os sentimentos de culpa do Não-Leitor”. A editora tem um nome curioso “Verso da Kapa”. O autor, Pierre Bayard, é professor de Literatura francesa na Universidade Paris VIII. Confesso que já não me lembrava deste livro insólito, no entanto as passagens sublinhadas a lápis, a colocação de sinaléticas pessoais, incluindo os smiles e os pontos de exclamação, comprovam-me que o li. Decididamente, Pierre Bayard tem razão quando afirma que ler é esquecer: “No preciso momento em que começo a ler, começo igualmente a esquecer o que li e este processo é fatal e prolonga-se até ao momento presente” (BAYARD, 2007: 51). O livro que esquecemos é ainda um livro que lemos?, pergunta. O que aproxima/diferencia o livro que não lemos do livro que esquecemos? Inesperadamente, eis que este livro se impõe de novo ao meu olhar, através do seu título transgressor. Depois, no prólogo, fundado na sua experiência docente, o ensaísta desenvolve o discurso subversivo proposto ao leitor como pacto de leitura: “Um discurso implícito da nossa cultura é que é necessário ter lido um livro para se poder falar dele com alguma precisão. Ora, segundo a minha experiência, é perfeitamente possível falar-se de forma apaixonada sobre um livro que não se leu e, acima de tudo, falar-se com alguém que também o não tenha lido”. (BAYARD, 2007: 8). A abordagem é desconcertante, mas o que o ensaísta passa a defender de imediato, não o é menos: “Mais ainda […], talvez seja aconselhável para que se possa falar com precisão sobre um livro, que não se tenha lido o mesmo na totalidade ou que, até, o livro nem sequer tenha sido aberto. Continuo a insistir nos riscos frequentemente subestimados, e inerentes à leitura, que corre quem quer falar de um livro.” (BAYARD, 2007: 8). Após uma releitura em diagonal, verifico, no entanto, que o discurso subversivo anda de mãos dadas com uma atitude, digamos, conciliadora com o status quo (pelo menos com aquele que toma o parecer culto pela cultura, a aparência pela realidade, uma vez que o que importa é agir como se…), ou, uma alternativa possível, que esse discurso se apresenta como um divertido exercício de ironia, marcado pela distanciação crítica e reflexiva. De qualquer dos modos, o texto de Bayard constitui, fundamentalmente, uma excelente peça de sociologia literária e uma denúncia da sacralização dos cânones literários. (E porque toda a leitura é intertextual, recordo a sociologia histórica da leitura, de Alberto Manguel, História da Leitura, onde são abordadas diacronicamente as imagens sociais atribuídas ao papel do livro e da leitura.). Na perspetiva de Bayard, “não há grande diferença entre um livro «lido» - se é verdade que tal categoria faz sentido – e um livro que se leu por alto. […] Basta juntar ao acto de leitura a dimensão tempo, que muitos teóricos negligenciam, para se ter perfeita consciência disso. A leitura não é o conhecimento de um texto ou a aquisição de um saber, visto que logo desde o início está votada ao esquecimento.” (BAYARD, 2007: 51). As categorias livro lido, “livro que se leu por alto” e livro não lido não fazem qualquer sentido para o autor. Devemos, isso sim, defende o ensaísta-professor, ter sobre os livros aquilo que uma personagem de Musil designa por uma “visão de conjunto”. Por esta razão, propõe uma nova taxionomia de quatro categorias de leitura (BAYARD, 2007: 156) que utiliza em nota de rodapé ao longo do ensaio sempre que refere uma obra – LI (Livro Desconhecido), LP (Livro Percorrido), LE (Livro Evocado), LO (Livro Esquecido), acompanhada de uma das quatro notações avaliativas: ++ opinião muito positiva, + opinião positiva; - opinião negativa; - - opinião muito negativa. Paralelamente, apresenta as novas categorias de leitores, ou melhor, de não-leitores: o que faz uma ideia do livro sem o conhecer, o que o percorre apenas, o que se permite falar de um livro depois do que os outros dizem dele. Falar-se de um livro que não se leu, talvez seja um pouco complicado, mesmo depois de termos lido atentamente o capítulo “Dos comportamentos a ter”, onde o autor nos explica que falar de um livro é, antes de mais, situá-lo na “biblioteca coletiva de cada cultura” e nos fala do seu caso pessoal: nunca leu Ulisses, de Joyce, mas costuma falar dele aos seus alunos. Da parte do leitor, falar de um livro não lido seria, em última instância, uma forma de libertação “da imagem opressiva de uma cultura sem falhas, transmitida e imposta pela família e pelas instituições escolares, imagem com a qual tentamos coincidir em vão toda a vida”; libertação “da exigência confrangedora de parecer culto, que nos tiraniza interiormente e nos impede de sermos nós próprios.” (BAYARD, 2007: 113). Os autores cujos textos Bayard refere para defender a sua tese são nomes (com)sagrados - Balzac, Óscar Wilde, Paul Válery, Umberto Eco, Montaigne, Graham Green, Natsume Sôseki; as ideias defendidas em cada um dos capítulos centram-se na análise/comentário de um texto específico de cada um desses autores (não existem coincidências? Evoco a estrutura do livro de Manguel, Um Diário de Leituras: 12 capítulos 12 títulos de 12 escritores). O seu discurso é persuasivo q.b.; a tese que defende plausível: é possível falar-se de forma apaixonada de um livro que não se leu. Com uma vantagem: o comentário de livros não lidos é uma verdadeira atividade criativa. Borges e Manguel fizeram-no, magistralmente, escrevendo não sobre livros mas sobre ficções de livros – Prólogo dos Prólogos e Dicionário de Lugares Imaginários, respetivamente, por exemplo.
Referências Bibliográficas BAYARD, Pierre (2007). Como falar dos livros que não lemos? Verso da Kapa: Lisboa. MANGUEL, Alberto (2008). Um Diário de Leituras. ASA: Lisboa. PIEGAY-GROS, Nathalie (1996). Introduction à L’Intertextualité, Dunod: Paris. |
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Pierre Bayard (1954-) |